Meus Senhores: Com a ideia de ser menos fastidioso e de me confinar ao que julgasse de maior utilidade para a compreensão do momento político nacional e internacional resolvi redigir uma breve exposição e apresentá-la, antes de se proceder à abertura da sessão legislativa. Pareceu-me que, longe da tribuna da Câmara e das suas exigências, nos encontraríamos mais à vontade na apreciação dos acontecimentos e quanto a alguma decisão que se houve de tomar. As características do momento actual são, não só na Europa mas no Mundo, a miséria e o medo. Estas duas realidades moldam o pensamento e a actividade dos povos e dos governos; tomam, a par dos delegados, assento nas assembleias; conduzem pela mão milhões de seres errantes, de refugiados, de escravos, de famintos; dominam a vida — são a própria vida de hoje. Não sei se me vale a pena — a minha inteligência tacteia na escuridão separá-los — para descobrir-lhes causas independentes. Talvez não, porque tudo no fundo é redutível à guerra, de um lado aos seus desacertos, do outro ao imenso consumo de riquezas que representou. Sei bem que é mais fácil criticar o passado que tomar deliberações para futuro, mas dentro de poucos anos já não sofrerá discussão a tese de ter ido errada a política de guerra das potências anglo-saxónicas. E o maior número inclinar-se-á a ver que todos os erros derivaram de dois — a tese da rendição incondicional e a prioridade do teatro europeu de operações. (Em parêntese direi compreender perfeitamente que os países ocupados e devastados a ocidente defendessem outra concepção). Daquelas posições proveio o esmagamento da Alemanha para além dos limites em que ainda poderia representar potência produtora, força defensiva e factor de equilíbrio no concerto europeu; e, pior que tudo isso, proveio também a inevitabilidade do avanço e ocupação russa até ao coração e posições dominantes da Europa. Tão longe se foi, impelido pela lógica dos princípios, que a acção internacional desenvolvida nos últimos dois anos e meio — planos, auxílios materiais, atenuação de regimes e de sanções impostas — para evitar a subversão completa, o caos, o desespero sobre a “abominação da desolação” se tem revelado inútil, pouco se distinguindo os vencidos de alguns vencedores. Ora, se aquilo que depende da geografia ou é filho do sangue do povo alemão se pode ainda restaurar, o último facto apontado acima, como de ordem político militar, pode muito bem impedi-lo, retardá-lo ou fazê-lo jogar em seu exclusivo favor. Está aqui a chave do problema base da Europa e um dos grandes problemas do Mundo. Assim a Europa sofre miséria e tem medo. Medo de quê? Medo da Rússia; medo do comunismo. E parece ter razão. Historicamente o germano representa o fronteiro da Europa em face do eslavo invasor; e as lutas, para a hegemonia continental não lhe fizeram perder esse carácter nem diminuíram o valor daquela missão. Por seu lado a Rússia, czarista ou soviética, inclinar-se-á a ver o problema em sentido inverso e, tendo perdido a oportunidade em 1918, não há-de querer desperdiçar a actual para dois fins: diminuir ao que possa, no aspecto material ou moral, o potencial alemão e aumentar eventuais resistências intermediárias entre ela e a futura Alemanha. Toda a sua política de guerra a essa nobre nação que é a Finlândia, a incorporação dos estados bálticos, o engrandecimento da Polónia para oeste, o sistema de acordos com estados vizinhos ou afins, em que as directrizes governamentais se ajustam a um fim comum e as economias se apoiam e completam, as pressões militares e económicas sobre a outra linha mais recuada de estados — essa política desconhece ou subalterniza qualquer solidariedade europeia de base igualitária a uma ideia de defesa ou de domínio. Não é ainda a guerra nem prenúncio de guerra. Vemos, porém, que o único ponto de contacto ou de desenvolvimento pacífico dos dois sistemas europeus está na desistência voluntária da Rússia à sua expansão territorial ou ao alargamento do seu poder relativamente às outras nações europeias. Não duvidamos de que a venderá caro. Em tais termos a Europa está condenada a viver anos em estado de permanente alerta e de sobressalto. Ela está enfraquecida, empobrecida, desmoralizada; ela não pode pensar, mesmo que se unisse sob a pressão das circunstâncias, em resistir sozinha. O resultado da última guerra e a decisiva intervenção norte-americana, com o apoio de todo o hemisfério ocidental, tiveram como efeito deslocar para oeste, como já várias vezes tenho notado, o centro de gravidade da política mundial, que não é nem pode já ser europeu, mas quando muito euro-americano. As mesmas razões que atraíram os Estados Unidos às duas últimas conflagrações e acabaram por elevá-los ao cume do prestígio e do poder os solidarizaram e prenderam à Europa — a eles e ao continente americano. De modo que por imposição dos factos e independentemente da vontade de dirigentes ocasionais, só há para os Estados Unidos (e direi o mesmo para a Comunidade Britânica) uma alternativa: dividir o Mundo com a Rússia, o que é impossível, além de contrário aos seus interesses e aos seus princípios, ou bater-se com ela, e na Europa, para os salvar. A fatalidade desta posição não é, a meu ver, a fatalidade da guerra; pelo contrário, se houver a perfeita consciência da situação, è a razão principal de a não sofrermos. Mas., ao considerá-lo, muitos se interrogam se a Europa, a do ocidente não estará condenada no próximo século a escolher entre ser americana ou ser russa. Eu admiro a largueza de espírito, a generosidade, a prontidão com que a América acorre em auxílio da Europa, quer para protecção individual de necessitados quer com o fim de dar à economia europeia meios de recuperação. E admiro-as tanto mais quanto nem sequer vejo que esse auxílio seja seriamente condicionado por exigências políticas ou outras capazes de garantirem a sua eficácia. A influência crescente que deste acto especial e da direcção dos negócios mundiais advirá para aquela nação em face da Europa não é discutível; mas o que isso represente como tendência hegemónica, domínio económico ou político, desvio ou deformação do espírito europeu não depende de qualquer propósito (aliás certamente estranho às preocupações dos Estados Unidos), mas dos meios de resistência que a Europa possa opor à diminuição do seu ser colectivo, das reservas de força moral e material que ainda possua para continuar a afirmar-se no Mundo. Ora mesmo na pior hipótese, para mim duvidosa — a de a Rússia conseguir moldar pelo seu espírito e pelas suas instituições as nações suas mais próximas vizinhas e de conseguir uma política de conjunto hostil à colaboração com as restantes nações europeias —, eu penso ou ao menos quero acreditar que a Europa do ocidente possui condições suficientes para se restabelecer e reconquistar o seu lugar. Julgo que a crise de alguns países é não só passageira mas superficial e que no fundo, nas raízes do ser nacional, há reservas de energia que podem ser despertadas, uma vez quebrada a crosta de desânimo, de indisciplina, de horror ao trabalho, que as asfixia. A Inglaterra, a França, a Alemanha, a Itália, as duas nações da Península Hispânica, para só falar dos agregados maiores, e sem esquecer o precioso contributo dos demais, se não venderem a sua alma nem deixarem abastardar as qualidades fundamentais do seu carácter, possuem as condições morais precisas para a recuperação. Mas há também condições materiais. Por feliz coincidência ou providencial disposição, os destinos de toda a África são solidários com a Europa do ocidente. Excepto no que respeita ao Egipto e à Abissínia (mas não à África do Sul, membro da Comunidade Britânica), a Inglaterra, a França, a Bélgica, a Itália, Portugal e a Espanha têm, através de regimes políticos ou económicos diversos, a direcção efectiva e a responsabilidade do trabalho, progresso bem-estar do sentimento africano. Uma política concertada de defesa e de valorização económica porá ao dispor do Ocidente produtos e riquezas que aumentarão de maneira assombrosa as suas possibilidades de vida e a sua contribuição para o intercâmbio mundial. A África é base suficiente para a política que se deseje fazer. Será escusado dizer que sou sincero, e não oportunista, ao exprimir tais modos de ver, mas não desejo também ocultar que atitudes meramente passivas em face destes problemas me parecem de todo inoperantes. As lamentações sobre o desastroso encaminhamento dos factos passados, os desabafos mais ou menos insultuosos contra a Rússia, o desânimo perante as dificuldades, a atitude de mão estendida, que só procura apoio ou esmola — tudo é negativo e estéril, além de que excederia o razoável e o possível como modo normal de vida. Será necessário alguma coisa de decidido e construtivo, se a Europa não quer demitir-se da sua posição: embora diminuída na relatividade das coisas, é ainda capaz de partilhar com o continente americano, filho do Ocidente e felizmente solidário com ele, as maiores responsabilidades. Embora as posições estratégicas e políticas resultantes da guerra denunciem por si mesmas grandes perigos e dificuldades, a consideração do estado geral dos espíritos e a evolução do pensamento político nalguns estados afastam-me de uma visão do futuro excessivamente pessimista. Isto é: eu não prevejo a catástrofe. Os dirigentes soviéticos têm-se revelado duros, tenazes, mas também prudentes. Têm na sua mão penhores preciosos, valores de negociação que lhes hão-de valer ainda grandes concessões das potências suas associadas. Esse é o caminho por onde hão-de tomar e, não arriscando nada, preferirão sobretudo esgotar as possibilidades de acção indirecta, através do prestígio do seu regime. Isto me conduz a dizer algumas palavras do outro grande medo que aflige as nações: o Mundo tem medo do comunismo. Qual a razão disso? A principal parece ter cristalizado à volta da ideia e do facto de se tratar de organização que, integrada no jogo das forças nacionais, recebe do estrangeiro a súmula doutrinal do seu programa e a orientação efectiva. Mas a mim não me parece razão bastante. Através da História e ainda nos tampos de hoje, numerosos movimentos se têm verificado de inspiração estrangeira e muitos, apoiados por esta ou aquela potência, têm infelizmente vingado contra a vontade e os verdadeiros interesses da nação que os suporta. A História está cheia destes pecados. De modo que, em face do comunismo, o que sobretudo importa não é saber que é protegido ou apoiado de fora – mas a essência da sua doutrina e as verdadeiras intenções da potência inspiradora. Esta última referência repõe no tabuleiro todo o problema anterior — ou seja a Rússia na Europa e no Mundo, a sua vida de relação com os mais estados, o valor prático para ela e a aceitação voluntária por sua parte daquele conjunto de princípios e de conceitos (uns pura emanação da moral, outros adquiridos e fixados peia experiência) sobre que deve viver e prosperar a comunidade internacional. Quer dizer: independentemente da execução do programa comunista, um problema continuaria de pé — o de saber-se a constituição da comunidade de nações por ela chefiada, que é o mesmo que dizer qual o grau de independência de cada país na gestão dos seus negócios internos e externos. Uma coisa me parece clara — a existência de pressões suficientes para se considerarem privilegiados ou preferentes os interesses da potência que a si própria teria reservado a posição de quase suserana. Já Hitler ou alguns dos seus sonharam essa construção; não julgo que a Europa no seu todo se pudesse submeter a semelhante fórmula. Concebe-se que a Rússia, por amor de um interesse político seu, se alheie algumas vezes, fora de fronteiras, do comunismo, não como governo, mas como ideologia. O comunismo, porém, não se desinteressará de si próprio. Salvo o caso de partido assim etiquetado para usufruir algum prestígio exterior, mas de facto apostado apenas em conquistar posições de mando, o comunismo, como doutrina integral que é, tenderá a modelar os homens, as sociedades, as instituições públicas e privadas segundo as concepções que defende. De modo que ou se contradiz e se anula no puro jogo de forças políticas concorrentes ou há-de por todos os meios fazer a sua revolução. Não cuide alguém que esta se limite a procurar corrigir desmandos, abusos, ilogismos, desacertos ou injustiças — tantos revela a actual organização social contra que temos de lutar sem descanso — nem a provocar a transferência do Poder de uma para outra classe ou legitimar a transferência de bens de uns para outros indivíduos; trata-se de criar um tipo diferente de humanidade, outra civilização (se é que esta forma de me exprimir se pode considerar correcta). Pouco importa saber que o não logra, porque, frustrada a revolução, terá pelo menos conseguido a desordem. Ora, sendo tão graves os perigos, quer de influência externa quer da subversão social, trazidos pelo comunismo, que processos de defesa se utilizam para o contrariar? Se não me engano, na Europa, salvo Portugal, a Espanha e a Suíça (embora esta última por motivos diferentes dos primeiros), e como na Europa, em quase todo o Mundo, o comunismo goza da liberdade de propaganda e organização, bastando-lhe – o que não custa nada – declarar-se integrado no plano das forças políticas nacionais. Por muita parte está representado em assembleias; em numerosos países faz parte dos governos. Este modo de proceder não pode deixar de significar ou que se considera o comunismo tão legítimo como outro qualquer programa partidário e apto à realização do interesse nacional ou que se espera torná-lo inofensivo num regime de absoluta liberdade política. Todos aliás temos ouvido dizer que os grandes remédios contra a doença comunista são: na Europa, a democracia e o socialismo; na América, a liberdade e o bem-estar geral. Não me proponho hoje discutir estas teses, sobre as quais tenho naturalmente as maiores dúvidas; levar-me ia longe o exame e ser-me-ia embaraçosa a referência a casos particulares que parecem contrariá-las. Direi apenas que, a meu ver, há-de ser muito difícil aos diversos estados manter, partindo de tais princípios, uma linha rigidamente lógica: alguns que por ela se encaminharam regressam ao ponto de partida; os que receiam usar da autoridade vêem-se depois compelidos a empregar a violência e felizes se consideram quando, como é geralmente o caso, não são subvertidos por ela; sobretudo não há confiança na terapêutica, pois que os povos vivem receosos e intranquilos. O Mundo tem medo do comunismo e os sovietes servem-se dele para os seus fins. Embora a traços muito largos, aí fica a indicação das fontes de maiores preocupações no momento actual; mas, sendo na verdade as maiores, não são as únicas. Acontece muitas vezes sobreviverem à guerra ideias dos vencidos que se diriam condenadas pela vitória; e, pelo contrário, alguns erros ou excessos que servem de razão ou de pretexto à luta parecem até prestigiar-se com ela. Lembro-me da pergunta tendenciosa de Mussolini; é verdadeiramente independente uma nação que não tem livre acesso aos grandes oceanos? e de como o seu espírito foi resvalando para a ideia da guerra sobre uma verdade incompleta e, por isso mesmo, sobre urna tese falsa. Recordo as insistentes referencias do nazismo à “Alemanha cercada” e à necessidade do seu acesso a outros territórios, como se, grande ou maior, a Alemanha não tivesse sido talhada pela geografia e pela história como nação no meio de nações. Todos têm presente os excessos do nacionalismo, então pregado contra o facto elementar e inelutável da solidariedade internacional, e as pretensões científicas desse nacionalismo, que se estrutura sobre a geografia, a raça e condições de independência económica, paredes meias com a nação suíça — a essa luz o maior ilogismo entre as nações. Não esquecemos como daí se partiu para o princípio de revisão da carta da Europa e para a necessidade de ajustamentos e deslocação das populações. Foram então correntes as ideias que gradualmente se infiltraram do livre acesso às matérias-primas coloniais, da redistribuição das colónias, da internacionalização colonial, que minavam os fundamentos das nações, desconheciam esforços e sacrifícios seculares ou simplesmente enfraqueciam a autoridade: em beneficio do quem? Tudo parecia grave ao ser enunciado, e algumas ideias estavam afinal muito longe do que viemos depois a ver nos factos. É natural a revivescência do nacionalismo que se seguiu à guerra e a ascensão de povos à independência política; e são até compreensíveis alguns excessos, filhos do entusiasmo. Mas, quando se reflecte nos acontecimentos dos últimos anos e em muito do que se pensa e continua a dizer pelo Mundo, há de sobra motivos para perguntar se os erros não eram afinal cartas de jogo, e só mudaram de mãos. Os problemas e os conceitos de que procurei dar o ligeiro apontamento não são, como se viu, teses de escola nem objecto de discussões académicas. Desdobram-se e multiplicam-se na vida de hoje em preocupações, ansiedades, desânimos, agitação internacional, com seu quê de desvairamento. Por ora parece faltar um mínimo de unidade de pensamento sobre que se construa com solidez, e mesmo os que, como nós, têm traçado o seu caminho e o seguem não ficam estranhos à influência de tão grandes perturbações. Evidentemente a nossa acção no plano internacional e no plano intento é determinada pelas posições definidas acima ou por aquelas que bem se podem subentender. Separa-nos de outros grande distância no juízo que fazemos do momento presente, mas não constituímos estorvo a qualquer apaziguamento ou ideia de colaboração internacional, e dentro da nossa modéstia pretendemos ser para todos e em toda a parte elemento construtivo e útil. Por isso nos não recusamos a andar em vertiginosas correrias pelo Mundo a tomar parte nas reuniões, conferências e congressos promovidos por numerosíssimas e activíssimas organizações. Pelo mesmo motivo apresentámos em devido tempo o nosso pedido de admissão nas Nações Unidas, embora estivéssemos cientes das dificuldades que se nos deparariam. No Conselho de Segurança a Rússia opôs o seu veto e inutilizou com esse acto a recomendação patrocinada por mais de dois terços dos votos. Os sovietes estavam dentro da sua lógica, mas não estavam no seu direito. Cumprido o nosso dever e em face do que se passara, não renovámos o pedido nem declarámos a desistência. A assembleia geral retomou no entanto há pouco os pedidos anteriores e fez ao Conselho as recomendações que, segundo a Carta, devia esperar dele. É manifesto que o acto, aliás juridicamente irrelevante, como já se viu, traduz a revolta da generalidade das nações contra o abuso, a prepotência ou chicana duma só. Foi-me, no entanto, agradável ver que nações inimigas durante a guerra tiveram melhor tratamento que os neutros. Estes estão naturalmente ganhos para a causa da paz e, segundo O Evangelho, é certo haver mais alegria no Céu pela conversão de um pecador do que pela perseverança de milhares de justos. Não vale a pena discutir as razões com que nos atacam os oradores soviéticos nem fazer previsões acerca do seu comportamento futuro. Creio que durante bastante tempo continuarão a opor-se a algumas nações qualificadas, no parecer da Assembleia, para ingressar nas Nações Unidas. Mas não há que afligir-nos por isso: os excluídos somos nós, mas os batidos são outros. Outro ponto. Os acontecimentos da guerra e do pós – guerra no Extremo Oriente — as perturbações da Indonésia, a libertação da China, a independência da Índia e do Paquistão — têm tido as suas repercussões nos nossos pequenos domínios daquelas paragens e criado ao Governo algumas preocupações, não obstante a dedicação e fidelidade das populações. No entanto Timor prossegue a sua normalização administrativa e restabelecimento económico, e tem-se sido bastante largo nos meios financeiros postos à disposição do governo local para reparar os estragos sofridos pela ocupação e devastação do invasor. Oxalá uma administração cuidadosa aproveite a oportunidade para refazer a economia timorense e promover a valorização que podem valer-lhe a situação geográfica, as riquezas do solo e do subsolo e as qualidades dos naturais. Encostada à China, como ponto de repouso e de refúgio de seus naturais, Macau não gozou sempre, depois da guerra e cumprida a sua missão de presença da Europa no Oriente, a tranquilidade merecida. A China libertou-se, e muito bem, em virtude dos seus sacrifícios e contribuição para a vitória, de todas as limitações que aqui e além durante dezenas de anos puderam ser criadas ao pleno exercício da sua soberania. Como signatário de tratados que as estabeleciam, Portugal teve o prazer de concordar também com a abolição de instituições ou privilégios que pudessem tocar o prestígio ou ferir as susceptibilidades da nação chinesa no seu próprio território. Por via de informação incompleta ou pela exacerbação de sentimentos alguns jornais chineses tiraram então ilações que não se ajustavam aos factos nem se afiguravam respeitadoras da nossa situação. Mas as excelentes relações de Portugal com a China, a mútua amizade e serviços recíprocos não foram perturbados por estes incidentes. A Índia Portuguesa, porém, tem sido objecto de maiores preocupações. A queda do Império da Índia e a constituição dos dois imensos domínios, ainda incorporados na Comunidade Britânica e amanhã possivelmente nações independentes, são sem dúvida grandes acontecimentos do nosso tempo. É mesmo compreensível que o facto se repercuta de certa maneira além - fronteiras e nos domínios estranhos à soberania britânica. Nos flancos da grande Índia ficam Goa, Damão e Diu. Deste pequeno Estado emigraram através dos tempos centos de milhares de indivíduos que, mantendo a nacionalidade portuguesa ou adquirindo até há pouco a nacionalidade britânica, ganhavam na grande Índia, à sombra da liberdade inglesa, a sua vida, como os índios na nossa África ou os portugueses do continente no Brasil. Por outro lado, nós possuímos Mormugão, que, como o melhor porto da costa ocidental, dá ou pode dar serventia fácil e económica a largas regiões do Indostão. Toda esta troca de populações e serviços é corrente na vida internacional e não constitui dificuldade de maior encontrar-lhes solução consentânea com os interesses das duas partes. É sem dúvida grande honra da cultura e do génio civilizador português no Oriente que os portugueses sejam apreciados na Índia, aí ilustrem Goa e possam servir até altos cargos da administração local. Simplesmente não se vê como havia de voltar-se contra nós essa nossa mesma superioridade. Se geograficamente Goa é Índia, socialmente, religiosamente, culturalmente Goa é Europa. Se ali habitam ocidentais, indo-portugueses e indianos, politicamente só há cidadãos portugueses, isto é, membros sem distinção duma comunidade civilizada com alguns séculos de existência, e que a servem não apenas onde nasceram, mas na metrópole e em todo o Império. Compreende-se que o vento que sopra na Índia tenha agitado os seus naturais, tenha perturbado alguns goeses que ali trabalham e temeram — aliás sem razão — pelo futuro das suas ocupações ou pensaram que ali se lhes abriria rasgadamente um futuro melhor, em determinadas condições. Compreende-se ainda que o zelo dos neófitos inspire certa imprensa, mas já podemos estranhar algumas afirmações de pessoas responsáveis, que, por o serem, devem conhecer os limites do seu direito. Nenhum risco correria a Índia, cuja independência nós, que há mais de quatro séculos lidamos com ela, podemos saudar comovidamente, nenhum risco maior correria do que invocar um vago racismo e pretender fundar um Estado sobre erros contra os quais ela mesma combateu. Se novas circunstâncias ou anseios da população que deseje aumentar as suas responsabilidades justificam modificações no estatuto ou regime administrativo, isso é problema que à Índia Portuguesa e a nós próprios respeita e que, estando já em estudo, terá oportuna solução. Mas nós temos, por outro lado, de confiar no patriotismo da nossa gente, cujo património religioso, cultural e até cívico não pode ser salvo senão na fidelidade ao Estado que, partindo do enlace do sangue, trouxe à Europa um pedaço da Índia e o fez parte do Império Português. Queria acrescentar umas palavras sobre a nossa política interna. Por brevidade e para não me repetir referir me-ei apenas a três pontos. Primeiro. Há muito tempo que o ambiente político se não afigura tão calmo e compreensivo como neste momento. Há certamente pessoas que, só vendo política activa na agitação dos espíritos e confundindo discussões estéreis com o estudo dos problemas, mal se habituam ao ritmo do nosso trabalho e à ética do regime. Mas os acontecimentos externos têm constituído ilustração tão cabal de muitas afirmações nossas; a instabilidade política tem de tal modo agravado as dificuldades dos governos e as deficiências de vida das populações; os remédios que se aconselham ou prevêem aproximam-se tanto de soluções experimentadas por nós, que mal se descortina campo onde oposições possam ainda medrar: o partidismo, ainda que atenuado sob a precária unidade de «movimentos» e de «forças», tem dificuldade em manter as suas posições. Aos nossos opositores aconteceu o que prevíamos: o seu liberalismo e vaga tendência social foram ultrapassados pelos factos e por nós próprios. E tendo ido buscar ao apoio comunista a novidade e dinamismo que lhes faltavam, apoio tão indesejável havia fatalmente de comprometê-los. A questão está pois como no começo: solução nacional aberta a todos os homens de boa vontade e de são patriotismo, ou nada. E aos que se admiram dos resultados obtidos diremos que politicamente pouco mais fizemos do que cingir-nos a algumas grandes verdades humanas e compreender o interesse e a alma da Nação. Apesar disso — e este é o segundo ponto — descobriu-se há meses um movimento sedicioso. Nada direi sobre ele, porque os acusados estão entregues aos tribunais e temos de respeitar o seu veredicto. Não infrinjo, porém, nenhum preceito ou dever lamentando ver incriminadas pessoas que ocuparam altas posições no regime e Governo da Nação e oficiais que nos tínhamos habituado a ver deste lado da trincheira. Sobre este caso têm surgido interpretações que parece tocarem na própria dignidade do Governo — o primeiro a dever observar a Constituição. Não tendo eu sido sagrado nem deito, a origem dos meus poderes não é outra senão a vontade de quem me confiou a missão, por outro lado firmada no que possa realizar em benefício do País. Quero ser juiz da minha capacidade de servir para o caso de outros serem comigo mais benévolos do que eu, mas todos me devem a justiça de considerar-me escravo dos princípios e incondicionalmente pronto a obedecer à decisão superior. Numa palavra, a dignidade do Governo é suficiente garantia da liberdade do Chefe do Estado, em quem, durante tantos anos da melhor e mais leal colaboração, nunca encontrei senão a preocupação da melhor solução dos problemas e do melhor governo para o País. Último ponto. Julgo que: não teremos muito sobrecarregada a próxima sessão legislativa com propostas do Governo, assoberbado em dar execução a algumas reformas importantes anteriormente votadas. Empregaremos no entanto esforços para definir as bases gerais do problema da habitação, pelo que talvez conviesse adiar a discussão do projecto, já relatado na Câmara Corporativa, relativo ao inquilinato, até estarem definidas linhas mais largas em que os assuntos ali versados se pudessem enquadrar. Seja como for, a forma deficiente como decorreram, no parecer geral, as relações entre o Governo e a Câmara nas duas últimas sessões legislativas, levou-me a pensar na conveniência para um e outra da designação de alguém que por mais estreito contacto com ambos pudesse fornecer uma informação mais urgente e traduzir o ponto de vista do Governo nalguma questão de maior transcendência política. Isso constituiria um elemento a mais, e quero crer seguro, para a formação da própria consciência, segundo a qual o Deputado deverá sempre querer votar. Eu atrevia-me a sugerir um nome e, se merecesse o aplauso dos Srs. Deputados, com esse se trabalharia. Penso que o trabalho exigirá que o leader — chamemos-lhes assim — seja devidamente coadjuvado; mas reputo o assunto mais ligado ao funcionamento da Câmara do que às relações da Câmara com o Governo e considero por isso preferível que a escolha seja feita sem a minha intervenção. Resta-me agradecer a atenção da vossa comparência e pedir desculpa do tempo que tomei. Sentir-me-ei contente se, na pressa com que tive de redigir esta exposição, não prejudiquei demasiado a clareza nem sacrifiquei ao acidental e secundário as questões sobre que me propunha falar.